Esgotado tudo o que poderia ser um desfibrilador para o retorno à vida, o último poema, que foi expelido para dar conta da insuportável perda, tinha como título “…” (reticências). Pela primeira vez, estava flertando com a continuação e o poema se fez em uma só frase: “aquele vaso de plantas carregava com ele uma extensão de você”. Foi neste último grito escrito que a tampa do caixão pôde ser fechada para enterrá-lo com menos culpa. Ocorreu no tempo exato de esvaziar as palavras.
Ana Alice Soares
Desde criança, observo o movimento das coisas. Ficava horas olhando para algo que me chamava a atenção pelo seu balanço específico. Percebia que cada coisa tinha um jeito próprio de se mover, e isso me fascinava. Ultimamente, minhas observações ficaram “presas” em cortinas. Troquei a cortina do espaço em que permaneço por longas horas e me pego admirando como a luz do sol a atravessa e reflete no ambiente. Olho para as tramas do tecido com desenhos tracejados e para como a junção da luz e do vento movem de formas diferentes a mesma cortina, mudando o tom ao anoitecer com a iluminação da rua.
De modo muito aleatório, comecei um curso de curta duração sobre o estudo da cor, que me levou ao Impressionismo e me fez encontrar as obras de Monet. O que também me levou a vasculhar sobre como ele pintava, o que o atraía para a pintura, e por que exatamente essa técnica. Nessas buscas, por meio de artigos e vídeos, descubro que Claude pintou a Catedral de Rouen mais de trinta vezes entre 1892 e 1893, explorando os efeitos transitórios da luz e da atmosfera. Ele gostava de observar como a luz se refletia naquela paisagem e as mudanças que ocorriam até na cor da pedra, conforme as condições climáticas e estações do ano.
O pintor priorizava colocar em suas telas a captura exata do que enxergava quando olhava para a paisagem e, por isso, as linhas em seus “formatos exatos” não apareciam. Pintar um movimento parece tão incrível quanto nomear uma música instrumental como "saudade". Quais notas, de um piano ou violino, por exemplo, podem definir saudade? Pensar sobre essas questões também lembra os movimentos da análise: de quantas formas precisamos olhar e questionar aquela mesma coisa para conseguir ver e dar vida a algo de outro ângulo? Não foi a pedra da catedral que mudou para que fosse pintada por Monet, e sim seu olhar lançado sobre a pedra.
Ana Alice Soares
Luto(s)
"Este livro é dedicado aos meus mortos, aqueles que carrego vivos comigo."
- Carla Rodrigues
O tempo para saber sobre a ausência, aquele oco que desorganiza, o eco nas ondulações do jogo de presença-ausência. Qual o novo desenho que toma forma no conflito entre perda e permanência?
Um pertence, como um casaco usado, marcado não somente pelo tecido que perdeu a cor, mas de todos os lugares que visitou e contribuiu para manter aquele corpo aquecido, corpo que agora é lembrança como matéria e presença enquanto memória. Há também aquele sapatinho de tricô, jamais usado, apenas idealizado sobre quem seria o minúsculo ser a se beneficiar do pedacinho de lã, mas se fez presente no colo vazio.
Um objeto sozinho, assim como o casaco e o sapatinho de tricô, não tem sentido algum sem que tenha a extensão de um nome, um alguém, uma história.
O que se perde? O que ecoa na dor ensurdecedora?
Pergunta essa que dá abertura para tornar este outro o que bem-queremos: "era bom", "era mau", "era bem-humorado", era… agora é um luto, "meu morto-vivo" à disposição dos desenhos que se cria para o que ecoa mais alto do que a própria vida.
Ana Alice Soares